Quando me vi definitivamente
fora do corpo, consegui coordenar por pouco tempo as ideias, mas o pavor do
desconhecido dominava-me sobremaneira. As lições que ouvira, nas poucas vezes
que frequentara a Mocidade ou que participara do culto no lar, não estavam
suficientemente enraizadas em minh´alma, portanto não proporcionavam a
segurança necessária para aquele momento. Estava suspenso acima do leito que
abrigava o meu corpo; ouvia, num misto de pavo e estranhas sensações, as
conversas:
-O rapaz está no estágio
final – dizia o medico. – Nada podemos fazer para salvar-lhe a vida.
-Para sofrer tanto assim,
com certeza absoluta abusou muito da sua juventude – falava a enfermeira. – Até
que resistiu além do tempo.
-Como você sabe que ele
resistiu com a enfermidade tanto tempo assim? – perguntou o auxiliar.
- Basta ver o estado em que
se encontra; veja-lhe o corpo, está acabado, não sei como resiste ainda –
tornou a falar a enfermeira.
-É melhor deixá-lo morrer de
uma vez, será melhor para ele para a família. É uma desgraça te rum filho que
contrai AIDS, uma vergonha para o pai – dizia o medico. – É o fim, o fim.
Essas palavras me pegaram em
cheio, pois ouvia tudo com nitidez. Daí, um estranho torpor invadiu-me o
espírito, e tive a sensação de ficar rodopiando como um pião. Sentindo-me cada
vez mais tonto, cheguei a divisar três vultos que se aproximavam de mim, sem,
contudo, poder reter na memória a identidade de cada um. Via-me arrastado
literalmente para a minha casa, onde me pareceu ouvir a voz de minha mãe e de Beth,
a mana querida, o que me dava certa tranquilidade ao espírito atordoado.
Não consegui manter a calma
por muito tempo, e uma onde de desespero invadiu-me de chofre, enquanto
desandei um pranto convulsivo. Ouvi vozes ao meu redor, e os vultos novamente retornaram.
-Calma, tranquilize-se –
parecia ouvir em meio à minha impressão e sentimentos.
-Somos amigos – insistiu a
voz que não se identificara.
Mas para que se identificar?
Era tamanho o meu desespero que não estabeleci a calma necessária para ser socorrido.
Juntei as ultimas reservas de força que tinha e, como tresloucado, comecei a
gritar:
-Socorro, tem defunto aqui,
me salvem, é fantasma, desencarnado. Socorro!
Eu não estou morto...
Se eu houvesse estudado as
lições evangélicas, conforme ensinavam na Mocidade, ou quanto participava do
culto com mamãe e Beth, talvez não me encontrasse nessa situação lamentável.
Foi no momento do meu desencarne que mais falta me fez o conhecimento
espírita-cristão. Só que nessa hora eu não pensava assim; na realidade eu nem
mesmo raciocinava direito e, de angustia em angustia, de desespero em
desespero, era jogado de um lado para outro por forças poderosas, como as
folhas secas em meio a um vendaval. Não me lembrei de orar. Não acreditava que
estava desencarnado; impermeabilizei-me ao auxilio superior e resvalei para
regiões sombria e pantanosas. Minha mente funcionava como poderoso projetor que
emitia imagens da minha própria vida, mas em sentido contrario.
Resvalava para as
profundezas de mim mesmo. Agora a minha individualidade era a Omã de meus atos,
a fusão de minhas experiências.
Como não dei campo à
intervenção do Mundo Maior, que vinha auxiliar-me no momento do desencarne, as
lembranças dos meus atos, de minha vida eram como chamas que queimavam a
consciência, em profundo remorso e tardio arrependimento...
Um turbilhão de pensamentos
emergiu de mim mesmo ameaçando-me a razão. O medo do nada já não me
atormentava, porem a incerteza do futuro, ante as lembranças do meu passado,
aumentavam ainda mais o meu afastamento das regiões abençoadas, onde eu poderia
ser mais prestamente socorrido.
Mergulhado nessas sensações
indizíveis, afigurou-se-me que estava preso por fortes cadeias de um passado
que teimava em perseguir-me; estava preso entre as lembranças de minha própria
vida...
É assustador o poder que a
mente possui de reter cada ato, cada palavra, cada pensamento que emitimos;
assemelha-se a uma fita magnética de extrema sensibilidade, onde são
indelevelmente gravados todos os pormenores de nossa existência.
Não encontrei desta lado
nenhum tribunal, nem juízes ou jurados a ameaçarem-me, condenando-me. Tampouco
vi o temível inferno ou demônio com a sua corte, esperando-me para alimentar as
chamas da Geena. Mas, ai de mim! Não pude fugir de mim mesmo, de minha consciência
culpada. Da dor e da vergonha de ser, eu mesmo, o protagonista desta historia
que se estampava nas telas mentais de meu espírito.
Imóvel, como se estivesse
paralisado por alguma força sobre-humana, revia as minhas experiências...
Trecho do Livro: Canção da Esperança pelas mãos de Robson Pinheiro pelo espírito Franklin